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quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

o caso do guarda chuva


O CASO DO GUARDA CHUVA

Naquela tarde azul e nublada alguma coisa era arquitetada no alto céu, algo que se pede tanto em dias quentes, mas quando vem, reza-se para que passe logo. Estavam todos com seus aparatos protetores prestes a serem acionados. Hoje em dia existem mil maneiras de acioná-los, cada uma mais engraçada que a outra, algumas nem mesmo funcionam. É tanta parafernália para apenas se proteger, uma pena não terem vida tão longa como quando minha avó os usava, estes sim duravam para algumas avós mais zelosas estes chegavam à terceira geração da família, sem contar nas suas variadas cores e tons, eram tantas que uma fotografia tirada lá de cima com algumas centenas, todos abertos, vistos de cima seria uma obra de arte de indiscutível beleza.

Mas nada ela chegar, nos rádios sua chegada era anunciada, na noite anterior só se falava nela, pessoas deixaram de sair por conta de sua visita, até que o relógio da central do Brasil marcou 17 horas e 31 minutos, junto ao movimento dos ponteiros começaram a cair os primeiros pingos, eram todos lindos, dançavam com o vento antes de e estabacarem no chão, nas casas, nas pessoas. Um ou outro desavisado ou esquecido corria para se proteger, mal sabendo ele que num situação deste porte, a pior coisa a se fazer é correr, a melhor é aproveitar, sentir cada gota como se fosse destinada a você.

Foi o que resolvi fazer, tirei o meu casaco e me dei aquele prazer de ser banhado em pleno centro do Rio de Janeiro. Algumas crianças que saiam de suas escolas acharam o fato muito curioso, brincavam nas pequenas e grandes poças de água, corriam, faziam seus barquinhos de papel, eram felizes, digo, são felizes, e eu vendo tudo aquilo, ali bem na minha frente, não tive como ficar indiferente, juntei-me a elas e corri, corria tanto que meu suor se misturava com a chuva em meu rosto, sentia que minha alma estava sendo lavada, senti uma paz que só me lembrava tê-la sentido em minha infância, nas brincadeiras no quintal com meus irmãos, senti até saudade da “roupa própria” para esta aventura no quintal – é que minha mãe separava uma roupa exclusiva para este momento de brincar, para nos sujar sem medo.

Nesta doce brincadeira esqueci que tinha uma casa, compromissos, reuniões, esqueci ate meu nome, e fiquei até não mais agüentar. Na verdade agüentaria sim, queria ficar, não sei por que não fiquei!

Já era noite quando fui para casa, fui tão contente que não estava nem AA para meu corpo todo ensopado, para os papéis perdidos, e quando cheguei a casa, todo molhado, logo vieram me falar da chuva, me cuidando como se eu fosse um pobre coitado que se molhou na volta para casa depois de um dia louco de trabalho.

Mas não disse nada, somente sorria e dizia bem calmamente, como os primeiros pingos que a culpa era da chuva... E ao mesmo tempo ouvia “... não disse para levar o guarda chuva”.

Pobres coitados são eles, não imaginam como eu fui feliz por não ter uma coisa desta para me esconder da chuva ali por perto. Sentia-me tão contente, com tudo gravado na minha memória, as crianças, as poças d’água, o cheiro da terra molhada, a vida surgindo pura em todas as novas gotas. Tudo tão molhado e tão bom, e tudo isso por que não usei meu guarda chuva naquele dia.”

Por Rômulo Ferreira

Um comentário:

Gino Ribas Meneghitti disse...

O cego condicionamento nos devora e suprime a nossa espontaneidade! Gostei deste texto por retratar de maneira simples e aparentemente "ingênua" a força com que certos hábitos e costumes são inseridos e reproduzidos de maneira maquinal em nosso meio. Parabéns meu nobre!!!

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